MACRO-JHÊ (Jhê)
No princípio desaguei no Litoral
Vem em quando pingo na Serra do Mar
E evaporo no Planalto Central
Meu nome é imensidão
Bacia larga
Megulho, me afogo
Na terra do sol
Do Sol
Ouro, língua, tronco
Cicatriz, estrela
Pirilampo-estrela
Ei-la!
Balanço, lamparina
Cacto, grampo
Flôr
Belisco, açúde, rama
Isca!
Invento o tempo todo todas essas coisas
Trá lá lá ra
Tra lá lá ra
Ra lá
PESCADOR DE TRAÍRA (Jhê)
Fisguei
Tua voz afogada na farra noturna
Biritando com força estufando de rir
Vestido de farda, cachimbo na boca: "capitão de navio"
Qual o quê!
Tá pra nascer lorota mais fraca
Caramujo de rio és um cara casado (eras!)
Vai salgar tua boca na beira do cais (vai!)
Meu beijo de água doce nunca mais
Pode vazar
Oceano é grande, é estrada sem fim
Não tem mandinga
Que me faça voltar pra ti
Desfiz o nó
Coração já tá pronto pra zarpar
O teu anzol
Enganchou na tua própria lábia
Pode amarrar
Sua canoa furada pra lá do meu barco
Nem venha me pedir licença pra bordejar
Que não vou dar
Não vou dar, nunca mais dou pra você
Vai ver, tu vai ter que ver
Que teu mar não tá pra peixe
Pescador de traíra
Jacundá, lambari, mandi, pacu
Pescaria acabou?
Cuidado pra não atrair candiru
Em vez de cuspir no prato
Maldizendo as piranhas que comeu
Vá jogar a rede num outro regato
A Mãe D’Água aqui sou eu
OUTRAS E OUTRAS (Jhê)
A pé, devagarinho
Roçando pétalas
Meu canto não tem raiz
De flor em folha vou
Transfigurada
Feito uma reza, encarnada
Tremer na febre do chão
Além de mim
Serei tantas que nem
Caberei nessa doida canção
Por isso outras e outras virão
Consagrar essa terra
Vermelha de nós
De cócoras
Irmãs de sangue
Ramo de erva limeira pra benzer
O sal grosso na pele sarará
Cicatrizes talhadas na cara
De quem sobreviveu as fogueiras
Faz do mel o veneno
O curare
Apura a pontaria
E espera
Plena de primavera dispara
Taca o inquisidor na caldeira!
QUASE UM FADO (Jhê)
Choro de amor e de saudade
Não tripudies
Têm piedade
Meu coração não suporta mais
Esse enxame de maldade
Tão disposto a magoar
Se nossa história teve um fim
Não cabe a mim
A culpa inteira
Deitei flores pelo chão
Inventando primaveras
No entanto...
Tiveste medo de te apaixonares
Tiveste medo dos olhos dos padres
Tiveste medo de passarinhar
E voar comigo pr’onde Deus quisesse
Ah... quem merece tamanha dor
Por isso choro de amor e de saudade
MEU NOME É LEGIÃO (Lucas Filipe)
Não tenho apenas frente e verso
Não sou só côncavo e convexo
Não me circunscrevo a uma só razão
Vivo entre a sombra e o reflexo
Sou corpo frágil mas concreto
Carne viva em contínua pulsação
Ô ô ô - o iô iô iô - o ah!
Sujeito múltiplo e complexo
Não encerro só dois sexos
Não tateio o mundo só com duas mãos
A pele em que me manifesto
Direito e avesso e avesso e avesso
Transpira entre a multidão
Ô ô ô - o iô iô iô - o ah!
Não caibo dentro do que meço
Encolho, cresço, atravesso
Corpo negro em eterna expansão
Explodo feito um universo
Destruo, depois recomeço
Sou quando o sim engole o não
Ô ô ô - o iô iô iô - o ah!
Me matam, mas eu nunca cesso
Me fecham, mas eu sou aberto
E só eles não passarão
Porque meu nome é Legião
ORGIA (Thiago Amud)
Quem somos, dissolutos, na trança dos corpos?
Quem somos nessa noite?
Por que nossa cabeça mudou de pescoço?
Quem somos nessa noite?
Mil alucinados requebrando
Sem ânsia nem dor nem futuro nem remorso
O novo dom das línguas baixou surdamente
Na boca dessa noite
O leite derramado sagrou a orgia
Na boca dessa noite
Quem rege o nosso instinto
É a estrela de absinto
E à beira do abismo bebemos licor
Todas, todos, todes
Somos cabras e bodes
Fuçando uns aos outros sem ódio nem amor
Pra quê o amor?
Perdidos o juízo, os órgãos, a roupa
Que as horas nos esgotem
E assim extasiados sem pele nem alma
Louvemos nosso totem
Belo semideus hermafrodita
Que torna-retorna pra que tudo se repita
Somos seus escravos nessa dança
Na noite gostosa da doce desesperança
PÁSSARA-LIRA (Jhê)
No zum zum zum do silêncio
Capturei uma voz
Plena de plumas invento
Ritmo
Pausa
Só
Pássara-Lira
Bico de flauta
Sagrado seja seu dom
Pássara-Lira
Pousa na letra
Soberba canta no tom
INSTRUMENTAL/PIRAÇÃO
NÓ NO TEMPO (Jhê e Marcos Braccini)
Ói o cavalo na estrada
Chei daquês pássaro preto
Ai, meu zoin pingand'água
E as perna bamba cumêdo
Na ribanceira do osso
As casa tudo largada
Beira de rio canhoto
Rua enxuta, pra nada
Êta destino mais torto
Itati sumidouro
Todas placa se fôro
Rasgo de faca sem ponta
Cerca de arame dentada
Barro vermelho confunde
O sangue, o rio e a estrada
A noite quase caino
E essa tarde parada
No meu peito menino
ÚLTIMA CANCIÓN (Jhê)
El amor se fue
Libre en las montañas
El amor murió
Tan calmo
De lo que nos queda
Dos o tres poesías y las noches blancas
Tus verdes lejanos
Tus sombras azules
Mis sueños
Como de costumbre volverán
Poco a poco una dulzura nueva al caer de la tarde
Tejerá la última canción
Y será verdad
El tiempo
Y será verdad
La espera
En la oscuridad de otro paisaje
Mirando el amor: la luna